Direito fundamental à felicidade: realidade ou ficção jurídica?

Quinta, 14 de maio de 2020

A ética filosófica há muito se ocupa em debater a noção de felicidade. Aristóteles, em "Ética a Nicômaco", obra dedicada à educação de seu filho Nicômaco, dedicou ao tema um entre os dez livros escritos. Para Aristóteles, "o bem soberano é a felicidade, para onde todas as coisas tendem" [1]. É dizer, todas as outras ações humanas são meros instrumentos para se atingir o bem maior: a felicidade.  

Na Grécia antiga, o filósofo Epicuro defendia que o culto a deuses era um desperdício de tempo, que não há existência após a morte e que a felicidade é o único propósito da vida. Para Epicuro, a busca pela felicidade era uma procura pessoal. Pensadores modernos, por outro lado, consideram-na um projeto coletivo [2].

Felicidade é a qualidade ou estado de feliz. Em outras palavras, é o estado de uma consciência plenamente satisfeita, de satisfação, contentamento, bem-estar.

Felicidade é dispor de tempo livre? É verter todo o tempo possível ao trabalho e com ele alcançar sucesso profissional? É poder se autodeterminar e ter empoderamento social?

Para alguns, felicidade é busca pela elevação espiritual, ações altruístas, valorização da família, enquanto, para outros, são conquistas profissionais, patrimoniais ou a notoriedade (fama). Nos dias de hoje, é rara a sensação permanente de felicidade. A modernidade é líquida, como ensina Bauman. [3] Logo, não é o objetivo que nos torna felizes, mas a jornada.

A noção de felicidade vem se alterando ao longo da história. As revoluções liberais oitocentistas quebraram o paradigma de que felicidade era uma questão metafísica, exclusivamente religiosa. A revolução humanista prega que o conhecimento é resultado de experiências e sensibilidades. Portanto, a decisão individual de cada um importa. Na política humanista, o eleitor tem sempre razão, na economia, o cliente tem sempre razão. Na estética humanista, a beleza está nos olhos do espectador. Na ética humanista, se é bom para você — faça! Na educação humanista, pense por si mesmo [4].

Economistas e pensadores de diversas áreas do conhecimento defendem a alteração do índice PIB per capita — Produto Interno Bruto — por FIB — Felicidade Interna Bruta (Gross Domestic Happines — GDH) para medir o sucesso de um país. Em Cingurapura, cada cidadão produz em média, por ano, bens no valor de U$$ 56 mil, enquanto na Costa Rica um cidadão produz, em média U$$ 14 mil. Sucessivas pesquisas indicam que os costa-riquenhos têm maiores níveis de satisfação com a vida que os cingapurianos [5].

No campo jurídico, a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 outorgou aos homens o direito de buscar e conquistar a felicidade, compreendida em um sentido individual.

De lá para cá, a Suprema Corte americana tem invocado o direito fundamental à felicidade como importante fundamento para decidir casos paradigmáticos, cuja matéria de fundo versa sobre igualdade, vedação a todas as formas de discriminação, pluralismo e, em última análise, concreção da dignidade da pessoa humana.

A Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a força normativa do direito à busca da felicidade no caso Meyer v. Nebraska, de 1923 (262 U.S. 390). Em 9 de abril de 1919, o Estado de Nebraska promulgou um estatuto chamado "Um ato relacionado ao ensino de línguas estrangeiras no estado de Nebraska", comumente conhecido como Lei de Siman ou "Siman Act". A lei proibiu o ensino e até mesmo o uso de língua estrangeira no estado. O objetivo era perseguir os imigrantes alemães por conta da Primeira Guerra Mundial. Em 1920, Robert T. Meyer, instrutor na Zion Lutheran School, ensinou leituras em alemão a Raymond Parpart, de dez anos. O procurador do condado de Hamilton entrou na sala de aula e descobriu Parpart lendo a Bíblia em alemão. Ele acusou Meyer de violar a Lei Siman [6].

Provocada, a Suprema Corte americana declarou a lei inconstitucional, afirmando que o direito à busca da felicidade seria uma norma constitucional implícita e que a lei seria inválida porque interferiu na vocação de professores, nas oportunidades dos alunos de adquirirem conhecimento e na prerrogativa dos pais de controlar a educação de seus descendentes [7].

O caso Loving v. Virginia, de 1967 (388 U.S. 1), conhecido como Loving Day, de 12 de junho de 1967 — julgamento, aliás, que ensejou o Dia dos Namorados em boa parte do mundo —, representou um marco dos direitos civis. A Suprema Corte americana, invocando, entre outros fundamentos, o direito à felicidade e à igualdade, autorizou o casamento inter-racial, até então criminalizado por leis do Estado da Virgínia. Na Virgínia vigiam as "leis Jim Crow" que institucionalizaram o racismo, promovendo a segregação racial nas escolas, nos ônibus, nos trens, em restaurantes, em banheiros públicos, em fontes de beber água e outros lugares públicos. Além de tudo isso, Virginia (como outros 16 estados) havia aprovado uma lei que bania o casamento entre pessoas de etnias diferentes. No caso, um homem branco, Richard Loving, e uma mulher negra, Mildred Loving, viajaram a Washington D.C, onde contraíram casamento em 1958. Ao retornarem à Virgínia, foram presos e condenados a um ano de prisão, comutada em exílio por violação à Racial Integrity Act de 1924. O casal viveu fora do estado por 25 anos [8].

O caso chegou à Suprema Corte, que, embora formada por maioria conservadora, declarou inconstitucional todas as leis estaduais antimiscigenação, adotando, entre outros fundamentos, o de que o direito à liberdade de casamento é um dos direitos individuais vitais e essenciais para a busca ordenada da felicidade por homens livres.

O caso Loving v. Virginia, de 1967, foi fundamental para o reconhecimento do casamento homoafetivo pela primeira vez no caso Obergefell v. Hodges (2015) [9], julgado também pela Suprema Corte americana.  

No Brasil, no julgamento da ADI 3300/DF, de 3 de fevereiro 2006, o ministro Celso de Mello fundamentou-se no direito à busca a felicidade para reconhecer como unidade familiar tutelada pela CRFB a união estável formada por pessoas do mesmo sexo, declarando, portanto, a constitucionalidade do casamento em relações homoafetivas [10].

Tramita atualmente no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição n° 19/2010[11], chamada de PEC da Felicidade, que pretende inserir no artigo 6º da CF o direito à busca da felicidade por cada indivíduo e pela sociedade mediante a adoção pelo Estado e pela própria sociedade das adequadas condições de exercício desse direito.

A alteração do texto constitucional, a nosso ver, tem relevante objetivo de atribuir maior responsabilidade ao Estado quanto ao seu dever de garantir direitos fundamentais sociais elementares à vida digna da sociedade. Embora o texto legal não seja capaz de transformar a realidade como se mágica fosse, possui caráter diretivo, de modo a influenciar o comportamento do gestor na prestação de serviços públicos fundamentais: educação, saúde, segurança lazer, proteção à infância, à maternidade, ao trabalho, moradia, alimentação, previdência social e assistência aos desamparados.

O direito fundamental à felicidade não é utopia, mas antes objetivo que, positivado no texto constitucional, direcionará corretamente as velas da nau orçamento público.

 

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2014.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. 13° impressão. Companhia das Letras. 2019.

MELO, João Ozório. CASAMENTO INTER-RACIAL. EUA celebram 50 anos de decisão judicial que foi "marco dos direitos civis". Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-jun-16/eua-celebram-50-anos-decisao-foi-marco-direitos-civis. Acesso em 5/5/2020.

MEYER v. Nebraska, 262 U.S. 390 (1923). Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/262/390/. Acesso em 5/5/2020.

OBERGEFELL et al. v. Hodges, Director, Ohio Department of Health, et al. Disponível em https://www.supremecourt.gov/opinions/14pdf/14-556_3204.pdf. Acesso em 5/5/2020.

PROPOSTA de Emenda à Constituição n° 19, de 2010. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/97622. Acesso em 5/5/2020.

STF. ADI 3300. Plenário, rel. Min. Celso de Melo, j. 03/02/2006 (Info 414). Disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo414.htm

 

[1] ARISTOTELES. Ética a Nicômaco; Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2014.

[2] HARARI, Yuval Noah. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. 13° impressão. Companhia das Letra. 2019, p. 39.

[3] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

[4] HARARI, loc. cit. p. 240/241

[5] Id. Ibid., p. 41.

[6] Meyer v. Nebraska, 262 U.S. 390 (1923). Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/262/390/. Acesso em 5/5/2020.

[7] Id. Ibid.

[8] MELO, João Ozório. CASAMENTO INTER-RACIAL. EUA celebram 50 anos de decisão judicial que foi "marco dos direitos civis". Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-jun-16/eua-celebram-50-anos-decisao-foi-marco-direitos-civis. Acesso em 05/05/2020

[9] OBERGEFELL et al. v. Hodges, Director, Ohio Department of Health, et al. Disponível em https://www.supremecourt.gov/opinions/14pdf/14-556_3204.pdf. Acesso em 5/5/2020.

[10] STF. ADI 3300. Plenário, rel. Min. Celso de Melo, j. 03/02/2006 (Info 414). Disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo414.htm

[11] Proposta de Emenda à Constituição n° 19, de 2010. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/97622. Acesso em 5/5/2020.